sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Elogio possível à felicidade



A felicidade é-nos uma coisa estranha, a nós, os não iluminados. A felicidade é algo de que temos vergonha quando se nos cola à pele. Temos medo que ela nos roube a sombra de que nos alimentamos. Temos medo que nos deite abaixo do pedestal em que vivemos e que nos faça cair junto dos iluminados, dos simples e dos cegos: os que com ela vivem. A felicidade é-nos exterior porque há muito que cavamos um buraco dentro de nós, um buraco que nunca enchemos e não queremos encher. Achamo-nos diferentes dos outros e gostamos de ser assim. Gostamos das nossas mãos vazias, porque são elas que nos fazem levantar da nossa cama vazia e nos conduzem até aqui, até à nossa escrivaninha do nosso quarto vazio. E é aqui que nós somos sublimes.
Nós, os não iluminados, sabemos o que é a felicidade, porque conhecemos todos os nomes e todas as palavras. Quando a felicidade foi lançada sobre os homens, também caiu sobre nós, mas nós fugimos dela para que, desde sempre, pudesse existir uma barreira intransponível entre nós e os outros. Nós não somos vítimas da sombra porque fomos nós que a criámos. Por isso, não volteis para nós a vossa luz. Deste lado do muro, não há nada que não haveis já visto. Os nossos corpos, o nosso cheiro, os nossos olhares são iguais aos vossos. Não há nada de errado connosco. Mas nós não queremos a vossa luz. Nós temos medo de ficar cegos. Nós não queremos ficar cegos.


A minha vida deu a volta que há muito estava à espera e, à conta disso, hoje, uma amiga minha perguntou-me porque não escrevia sobre a felicidade. Este é o elogio possível.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Interdito


— Não consigo escrever diálogos. Primeiro, há os travessões e os parágrafos e aqueles verbos que nunca ninguém diz, muito ao género de exclamar e retorquir. E, depois, há pessoas a falar à vez. Sim, à vez, uma de cada vez, alternadas, numa sequência que provavelmente só fará sentido nos nossos cérebros viciados em ordem. E, depois, há as palavras ocas. Há o vazio.

— Se não tens jeito para escrever diálogos, não escrevas. Não digas mais nada ou o laço que fazes das ideias vai acabar por se tornar num nó impossível de desatar.

— Sempre que tento escrever um diálogo as ideias começam a intricar-se, as personagens a imiscuir-se, os parágrafos a desaparecer, os travessões também e, quando dou conta, há apenas um conjunto de discursos internos dentro de outros discursos dentro de personagens dentro de pessoas dentro de mim.

— Tinhas de aparecer aí no meio, não tinhas? Dê as voltas que der a conversa termina sempre em ti. Em última instância, só existes tu. Tu e a porra do teu egoísmo.

— Enganaste, meu amor, és sempre tu quem existe. As palavras são sempre para ti. Sempre tuas. Quando digo meu amor (e apetece-me atirar-te esta palavra à cara como se atira uma pedra para dentro de um lago parado) há uma parte de mim que deixa de existir. Há uma parte de mim, por baixo da minha pele, por dentro da minha carne e dos meus ossos que morre. A minha anulação é aquilo que busco em ti.

— Amor? O amor é só uma palavra. Não a gastes. Se nunca a usaste, não comeces agora. Deixa que, por uma vez, a noite seja apenas uma noite de silêncio e não uma noite de palavras.

— Meu amor, as palavras são a única coisa que existe. Quando a parte de mim que está por baixo da minha pele, por dentro da minha carne e dos meus ossos tiver desaparecido definitivamente: quando tu a tiveres acabado de matar: quando também a minha pele, a minha carne e os meus ossos estiverem mortos: quando tu estiveres morto, as palavras continuarão a existir. Ainda que o destino nos corte a voz e nos silencie os gestos (e isso vai acontecer, meu amor, nenhum de nós tem vocação para a felicidade), as palavras continuarão a existir. Para lá de nós. Dos estilhaços de nós. E ainda nós. Meu amor.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Partida

Fotografia de Annie Leibovitz

Encosto a chávena aos lábios e bebo um travo de chá que acaba por me escaldar. Sorris-me do outro lado da mesa, quando percebes que não te estava a ouvir e continuas a folhear o jornal. Estou cansada, não leio as notícias há dias e a última coisa que me apetece fazer é ter uma discussão inteligente sobre a situação político-partidária do país. Permaneço em silêncio e continuo a beber o meu chá. Sempre gostamos destas tardes inúteis em que as horas, ao invés de passarem, discorrem. Destas tardes de conversas inacabadas em que, folheando um jornal, arrogantemente nos sentimos na posse de um entendimento superior do mundo.
Vais embora ao fim da tarde, tens a mala encostada aos pés da cadeira e continuas a ler o jornal com a mesma cadência, impávido, quando te digo para teres atenção às horas. Afinal, és sempre tu quem parte. E é sempre o meu corpo magro e de braços ao comprido que tu abraças com muita força, numa tentativa falhada de ensurdecer a voz metálica que anuncia a partida do teu comboio.
Hoje, quando fores, leva contigo os meus medos, as minhas hesitações, as minhas angústias. Leva contigo tudo o que me é externo, latente e amargo, e estilhaça-o no chão. Abre a gaveta que guardas de mim e rasga todas as fotografias e todas as cartas. Destrói as teorias, as palavras complicadas, as filosofias. Quebra tudo o que não sou. Parte-me. Quando chegares a casa, estarei à tua espera.