terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Partida

Fotografia de Annie Leibovitz

Encosto a chávena aos lábios e bebo um travo de chá que acaba por me escaldar. Sorris-me do outro lado da mesa, quando percebes que não te estava a ouvir e continuas a folhear o jornal. Estou cansada, não leio as notícias há dias e a última coisa que me apetece fazer é ter uma discussão inteligente sobre a situação político-partidária do país. Permaneço em silêncio e continuo a beber o meu chá. Sempre gostamos destas tardes inúteis em que as horas, ao invés de passarem, discorrem. Destas tardes de conversas inacabadas em que, folheando um jornal, arrogantemente nos sentimos na posse de um entendimento superior do mundo.
Vais embora ao fim da tarde, tens a mala encostada aos pés da cadeira e continuas a ler o jornal com a mesma cadência, impávido, quando te digo para teres atenção às horas. Afinal, és sempre tu quem parte. E é sempre o meu corpo magro e de braços ao comprido que tu abraças com muita força, numa tentativa falhada de ensurdecer a voz metálica que anuncia a partida do teu comboio.
Hoje, quando fores, leva contigo os meus medos, as minhas hesitações, as minhas angústias. Leva contigo tudo o que me é externo, latente e amargo, e estilhaça-o no chão. Abre a gaveta que guardas de mim e rasga todas as fotografias e todas as cartas. Destrói as teorias, as palavras complicadas, as filosofias. Quebra tudo o que não sou. Parte-me. Quando chegares a casa, estarei à tua espera.